A-espiritualidade

Lucas de Siqueira
6 min readJan 21, 2024

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Igreja no centro de uma metrópole agitada. Imagem criada por IA.

A mim me parece que um dos conceitos mais interessantes introduzidos por Kierkegaard em sua obra “O desespero humano” para falar, nas entrelinhas, sobre as consequências do processo de secularização das sociedades é o conceito de “a-espiritualidade”.

Como a própria morfologia da palavra sugere, o conceito de “a-espiritualidade” tem a ver com a negação da dimensão espiritual da natureza humana, mas em um nível muito mais profundo do que a promovida pela mera incorporação do materialismo ao senso-comum ocidental. Para Kierkegaard, em uma sociedade “a-espiritual”, embora palavras como “alma”, “Deus” e “espiritualidade” possam fazer parte do vocabulário quotidiano, na prática, elas não têm nenhum sentido concreto, e isso porque o estilo de vida das pessoas se tornou completamente “finitizado”, isto é, circunscrito à esfera da imanência, sem qualquer preocupação de ordem sobrenatural.

Para Kierkegaard, em uma sociedade “a-espiritual”, ao contrário do que se poderia pensar, também existem templos, sacerdotes e livros-sagrados.

Pode até mesmo haver grandes manifestações populares de fé e piedade.

No entanto, não há nenhuma consciência do sagrado enquanto tal.

O que nos leva a perguntar: considerando que vivemos em uma sociedade “a-espiritual”, como foi que chegamos a esse ponto?

Ou melhor, como foi que perdemos de vista o horizonte da transcendência?

Talvez nos ajude a encontrar uma resposta para essa pergunta pensar sobre o conceito kierkegaardiano de “a-espiritualidade” à luz da teoria de Kierkegaard dos “três estádios da existência”, segundo a qual o que ele chama de “Religiosidade-B”, ou religião autêntica — na qual a consciência do sagrado desempenha um papel determinante — está tão distante do nosso atual estilo de vida que seria necessária uma transformação radical da mentalidade coletiva para reacomodar a ideia de “Deus” no centro da cosmovisão ocidental.

Para ilustrar essa teoria, permita-me recorrer à teoria dos conjuntos.

Imagine a vida humana como algo que pode se desenrolar dentro de três conjuntos distintos e mutuamente excludentes de princípios norteadores, valores e convicções: o conjunto da “estética”, o conjunto da “ética” e o conjunto da “religião”, conforme a ilustração abaixo.

Os três “estádios da existência”, segundo Kierkegaard.

Para Kierkegaard, esses são os três “estádios da existência”.

No “estádio estético”, a vida se resume a buscar prazer e evitar sofrimento. O “esteta” é um hedonista, alguém que está mais preocupado com o seu próprio bem-estar e satisfação pessoal do que com qualquer outra coisa. Ideias abstratas exercem sobre ele pouca ou quase nenhuma atração, e, por esse motivo, ele está sempre voltado para a sensualidade.

Quando não pode entreter-se com alguma coisa, ele fica entediado.

E nada o aborrece mais do que o tédio.

Por isso, ele está sempre em busca de novas distrações.

Já o “sujeito ético”, ou aquele que não vive de acordo com a cartilha do “estádio estético” ou do “estádio religioso”, é o indivíduo que vive em função da noção de dever. Para ele, as convenções sociais e a norma estabelecida ditam a regra. A sua vida é uma vida de renúncia e de comprometimento com grandes responsabilidades, como o trabalho e o casamento. Os seus interesses nunca vêm em primeiro lugar e ele está sempre disposto a se sacrificar por um “bem maior”.

Todavia, a sua vida é tão “profana” quanto a do esteta. Assim como a dele, ela também gira em torno do “mundo” e de sua lógica, e a vida dentro do “estádio estético” não está menos distante da que é vivida dentro do “estádio religioso” do que a vivida no “estádio ético”.

Ambos, o “esteta” e o “sujeito ético”, estão dedicados à persecução de objetivos intramundanos, e, ainda que, por motivos diferentes, possam frequentar igrejas, praticar jejuns e se benzer com água benta, o papel desempenhado pela religião em sua vida não se compara ao que ela desempenhava na vida de um Abraão, de um Isaque e de um Jacó.

Para um Abraão, um Isaque e um Jacó, segundo Kierkegaard, a fé não se expressava de acordo com o que ele chamou de “Religiosidade-A”, uma forma de religião que nunca vai além do âmbito da estética e da ética e que nunca impulsiona o indivíduo para uma verdadeira experiência de encontro com Deus e de “metanóia”, no sentido estrito do termo.

Para Kierkegaard, o sujeito autenticamente religioso é alguém que não consegue se esquivar de suas inquietações existenciais. É alguém que foi profundamente tocado pela consciência do sagrado e que já não vê mais sentido em viver a vida como antes, com base apenas no cumprimento de suas muitas obrigações diárias, na busca desenfreada por prazer ou na tentativa desesperada de evitar o sofrimento, bem como na satisfação de suas necessidades fisiológicas.

O sujeito autenticamente religioso é alguém que obteve um vislumbre do Infinito, do Absoluto, e para quem, por isso mesmo, todas as coisas finitas se tornaram relativas, vazias em si mesmas.

Por essa razão, na medida em que a sociedade vai impondo às pessoas um determinado estilo de vida, que as confina dentro dos estádios ético e estético da existência e que as priva do tempo e do incentivo necessários para o cultivo da espiritualidade, ela vai se tornando uma sociedade cada vez mais “a-espiritual”, cada vez menos sensível ao “sobrenatural” e cada vez mais indiferente às exigências da religião.

E isso explica tudo.

Kierkegaard provavelmente não ficaria surpreso ao descobrir que, nos tempos que correm, para a maioria das pessoas que se consideram religiosas, ser “espiritual” equivale a nutrir um profundo “sentimento religioso”, a ficar “entusiasmado” no culto ou então a se emocionar com o sermão do pastor, ou quem sabe a cumprir o preceito dominical, seguindo à risca os mandamentos da Igreja e sabendo de cor o Catecismo e o Código de Direito Canônico.

Esses são traços da “religião estética” e da “religião ética” que ele tanto denunciou, e que têm mais a ver com a infiltração da mentalidade laica no meio religioso — já que tais formas de religião são perfeitamente compatíveis com o nosso atual estilo de vida burguês e comezinho — do que com a vida religiosa de verdade.

Para Kierkegaard, a vida religiosa de verdade implica em adotar um estilo de vida que nos impele sempre para a busca da transcendência, e requereria de nós muito mais do que a mera admiração por um grande ideal ou o comprometimento com um determinado código de conduta, o que, muito embora possa estar revestido de uma inspiração aparentemente piedosa, não nos mantém menos cativos ao status quo do que uma vida dada à irreligião.

A vida religiosa de verdade exige de nós um salto de fé, e, consequentemente, na tradição cristã, o ato de encarar como a nossa prioridade número um a busca da comunhão com Deus, a consideração das verdades eternas e a imitação de Cristo, deixando de lado tudo o que possa vir a nos desviar do discipulado e do estilo de vida simples e contemplativo que ele nos propõe.

Em síntese, para Kierkegaard, a vida religiosa de verdade é uma vida marcada pelo ascetismo. O que não significa, obviamente, que apenas monges entrarão no Reino dos Céus. A concepção kierkegaardiana de ascetismo tem uma veia luterana, e enquanto tal só pode ser corretamente interpretada no devido contexto.

Mas isso é um assunto para outra hora.

Por hora, basta enfatizar que se hoje vivemos em uma sociedade “a-espiritual”, talvez seja porque a “morte de Deus” e o avanço do secularismo criaram as condições perfeitas para que, de alguma forma, nos esquecêssemos de que somos espírito, e do verdadeiro significado de ter uma alma.

Ou talvez seja porque vivemos em uma era na qual estamos sobrecarregados por estímulos sensoriais, que sequestram a nossa atenção, e na qual a nossa energia mental está sendo constantemente drenada pelo trabalho e pelas diversas ocupações do dia a dia, o que nos impede de desenvolver uma consciência espiritual.

Ou então porque passamos a encarar a religião como mais uma forma de distração, de “ópio” que nos entorpece e anestesia a consciência, ou de tradição familiar , a qual levamos adiante mais por hábito e “respeito humano” do que por convicção.

Quem sabe?

No fim, pode ser que Kierkegaard esteja certo. E talvez a saída para muitos de nossos problemas atuais passe, necessariamente, pelo cultivo de uma forma autêntica de espiritualidade.

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