A tarefa de ser si-mesmo

Lucas de Siqueira
3 min readJun 2, 2024

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Como ser autêntico em uma sociedade de massas, que sobrepuja o indivíduo em detrimento das coletividades e que nos priva do tempo e do incentivo necessários para o exercício do autoconhecimento?

Esse é o problema da autoalienação, um tema que atravessa a obra de Kierkegaard e que permeia toda a sua reflexão, o que nos permite descrever o seu projeto filosófico como uma tentativa de compreender a natureza da subjetividade humana e o processo de constituição de nossas identidades pessoais em meio a um mundo que, a todo momento, nos coloca em contato direto com a alteridade e nos convida a pensar a nossa singularidade no ato do encontro com o outro.

De acordo com Kierkegaard, ninguém nasce com uma identidade fixa.

Daí a máxima existencialista “a existência precede a essência”, que inverte a lógica da ontologia tradicional, segundo a qual todo ente, ao se tornar um ser existente, já possui uma essência pré-determinada.

O que diferencia o sujeito de um mero objeto é precisamente o fato de que, enquanto ser dotado de autoconsciência e de autonomia, ele pode também se autodeterminar, isto é, tornar-se algo bem diferente daquilo que, em função de fatores genéticos e ambientais, está destinado a se tornar.

Para Kierkegaard, ser si-mesmo é uma tarefa, e não um jugo.

O “eu” do homem não é uma substância metafísica a qual devemos incorporar passivamente ou então um personagem, criado por outrem, o qual nos cabe apenas interpretar no grande teatro da vida.

Ser si-mesmo, portanto, supõe um esforço consciente de nossa parte, um engajamento ativo e intencional no sentido de nos individuarmos, de realizarmos nós mesmos a síntese que nos constitui de forma original e com as nossas próprias mãos, com as nossas próprias ideias e com as nossas próprias energias psíquicas.

Não podemos nos furtar a essa dinâmica.

Terceirizar o processo de subjetivação, delegar a outros a lida com os nossos narcisos, mimetizar o padrão de comportamento imposto pela sociedade implica em autoalienação, em despojamento de si, em viver uma vida inautêntica e entregue ao desespero.

Temos o dever de forjar as nossas próprias personalidades.

Caso contrário, viveremos para sempre debaixo de máscaras, desempenhando o papel que os outros nos impõem.

E encarar o ato de ser si-mesmo como uma tarefa vai além disso.

Quem nos deu esta tarefa? O que significa encarar a vida como uma tarefa?

Significa que estamos sendo avaliados e que, no fim das contas, teremos que prestar contas da forma como negligenciamos ou nos servimos do nosso potencial? Significa que existe um Avaliador?

A maioria das escolas de psicologia que segue a linha de pensamento de Kierkegaard e que encara o desenvolvimento da subjetividade humana como uma forma de autopoiese não encara esse processo como um fenômeno teleológico, mas, se partirmos da premissa de que sim, de que ser si-mesmo possui uma finalidade, o que me parece ser uma questão central do existencialismo, então talvez haja.

Não será como disse Paul Claudel?

“Deus é Aquele que, em mim, é mais eu do que eu mesmo.”

Se for assim, aliada à tarefa de ser si-mesmo está a tarefa do salto de fé.

E, a esse respeito, Kierkegaard ainda tem muito a nos ensinar.

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