A tarefa de ser si-mesmo
Como ser autêntico em uma sociedade de massas, que sobrepuja o indivíduo em detrimento das coletividades e que nos priva do tempo e do incentivo necessários para o exercício do autoconhecimento?
Esse é o problema da autoalienação, um tema que atravessa a obra de Kierkegaard e que permeia toda a sua reflexão, o que nos permite descrever o seu projeto filosófico como uma tentativa de compreender a natureza da subjetividade humana e o processo de constituição de nossas identidades pessoais em meio a um mundo que, a todo momento, nos coloca em contato direto com a alteridade e nos convida a pensar a nossa singularidade no ato do encontro com o outro.
De acordo com Kierkegaard, ninguém nasce com uma identidade fixa.
Daí a máxima existencialista “a existência precede a essência”, que inverte a lógica da ontologia tradicional, segundo a qual todo ente, ao se tornar um ser existente, já possui uma essência pré-determinada.
O que diferencia o sujeito de um mero objeto é precisamente o fato de que, enquanto ser dotado de autoconsciência e de autonomia, ele pode também se autodeterminar, isto é, tornar-se algo bem diferente daquilo que, em função de fatores genéticos e ambientais, está destinado a se tornar.
Para Kierkegaard, ser si-mesmo é uma tarefa, e não um jugo.
O “eu” do homem não é uma substância metafísica a qual devemos incorporar passivamente ou então um personagem, criado por outrem, o qual nos cabe apenas interpretar no grande teatro da vida.
Ser si-mesmo, portanto, supõe um esforço consciente de nossa parte, um engajamento ativo e intencional no sentido de nos individuarmos, de realizarmos nós mesmos a síntese que nos constitui de forma original e com as nossas próprias mãos, com as nossas próprias ideias e com as nossas próprias energias psíquicas.
Não podemos nos furtar a essa dinâmica.
Terceirizar o processo de subjetivação, delegar a outros a lida com os nossos narcisos, mimetizar o padrão de comportamento imposto pela sociedade implica em autoalienação, em despojamento de si, em viver uma vida inautêntica e entregue ao desespero.
Temos o dever de forjar as nossas próprias personalidades.
Caso contrário, viveremos para sempre debaixo de máscaras, desempenhando o papel que os outros nos impõem.
E encarar o ato de ser si-mesmo como uma tarefa vai além disso.
Quem nos deu esta tarefa? O que significa encarar a vida como uma tarefa?
Significa que estamos sendo avaliados e que, no fim das contas, teremos que prestar contas da forma como negligenciamos ou nos servimos do nosso potencial? Significa que existe um Avaliador?
A maioria das escolas de psicologia que segue a linha de pensamento de Kierkegaard e que encara o desenvolvimento da subjetividade humana como uma forma de autopoiese não encara esse processo como um fenômeno teleológico, mas, se partirmos da premissa de que sim, de que ser si-mesmo possui uma finalidade, o que me parece ser uma questão central do existencialismo, então talvez haja.
Não será como disse Paul Claudel?
“Deus é Aquele que, em mim, é mais eu do que eu mesmo.”
Se for assim, aliada à tarefa de ser si-mesmo está a tarefa do salto de fé.
E, a esse respeito, Kierkegaard ainda tem muito a nos ensinar.