O cavaleiro da fé e o homem-massa

Lucas de Siqueira
7 min readJun 21, 2024

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Em sua obra seminal “A rebelião das massas”, escrita em 1929, uma época na qual o “coletivismo” soviético ainda era idealizado como um contraponto ao “individualismo” do Ocidente capitalista — mergulhado em profunda crise econômica — , o filósofo espanhol José Ortega y Gasset, ciente de que, em nossas sociedades de consumo, não estamos menos sujeitos aos perigos da mentalidade de rebanho, nos legou a seguinte definição de “homem-massa”, um conceito que cai como uma luva em se tratando de elucidar a relação entre a experiência do salto de fé e o problema da autoalienação em Kierkegaard:

“[O homem-massa] […] é todo aquele que não se valoriza a si mesmo — no bem ou no mal — por razões especiais, mas que se sente ‘como todo o mundo’, e, entretanto, não se angustia, sente-se à vontade ao sentir-se idêntico aos demais” (GASSET, p.22)

Que podemos deduzir disso, levando em conta a reflexão de Kierkegaard sobre a relação entre o “Den Enkelte” — o indivíduo singular, em dinamarquês — , e o que ele chama de “Mængden”, a “multidão”?

Em primeiro lugar, podemos deduzir que, assim como Ortega y Gasset, mas em pleno século XIX, pelo simples fato de ter colocado em evidência com a sua filosofia o desafio de ser pessoa em uma época na qual a atual sociedade de massas ainda estava emergindo, Kierkegaard já demonstrava ser um grande crítico não apenas do “coletivismo”, que oprime o indivíduo a favor de uma suposta “vontade popular”, mas também do “individualismo”, entendido aqui como fenômeno de despersonalização que reduz o sujeito a uma espécie de “átomo social”, de “coisa pensante”, uma espécie de objeto que pode ser descrito, estudado e categorizado de acordo com determinados padrões.

Com efeito, podemos ver como que um prenúncio da figura do “homem-massa” — que nos parece ser algo tão típico do século XX — já na figura kierkegaardiana do “det offentlige menneske”, o “homem-público”, uma expressão que, no léxico de Kierkegaard, designa o indivíduo inautêntico, aquele que vive inconsciente de ter um eu, indiferente à vida do espírito, mais dado à exterioridade do que à interioridade e que, portanto, vive circunscrito à esfera da imanência, “finitizado”, sempre ocupado e distraído de si com alguma coisa.

No dizer de Kierkegaard, “por estar completamente finitizado, por ao invés de ser um si-mesmo ter se tornado um número, uma pessoa a mais […]” (KIERKEGAARD, p. 66), o “homem-público” “[…] acha que é arriscado demais ser si mesmo, [que é] muito mais fácil e seguro ser como os outros, tornar-se uma cópia, um número, uma parte da massa” (KIERKEGAARD, p.67), e, consequentemente, ele “[…] deixa como que surrupiar o seu si-mesmo ‘pelos outros’” (KIERKEGAARD, p.66).

Em outras palavras, para Kierkegaard, aquilo que Ortega y Gasset chamou de “homem-massa” é o sujeito inautêntico, aquele que renunciou à “tarefa de ser si-mesmo”, que nunca se afirma e nem se opõe a nada por conta própria. É aquela pessoa que jamais assume as rédeas da própria vida e que está sempre seguindo a “moda”, terceirizando a formação de suas próprias opiniões. Ela gosta de se comparar aos outros e se espelha em ideais alheios. Está sempre fazendo o que os outros fazem e se preocupando com o que os outros pensam.

Para ela, a solidão e introspecção são um suplício.

O que nos leva ao segundo ponto.

O que deu origem ao “homem-massa”?

Considerando que estamos no século XXI e que, já tendo conhecido os horrores do coletivismo stalinista e nazifascista, nos é impossível não associar a origem do “homem-massa” a um certo movimento de revolta contra os excessos do individualismo que teriam sido promovidos pelas democracias ocidentais e ideologias econômicas liberais em meados do século passado, pode ser tentador encarar o “homem-massa” como um problema que se originou no passado e que, portanto, ficou no passado. Segundo esse ponto de vista, poderíamos concluir que, após o fim da Segunda Guerra Mundial e a queda do Muro de Berlim, muito embora estejamos vivendo em uma sociedade global, mais gregária do que antes, o “homem-massa” seria uma realidade ultrapassada, e, hoje em dia, na era das “selfies” e do “marketing pessoal”, quando já não estamos mais sob a ameaça de um Estado Totalitário, todos estaríamos mais livres do que nunca para buscarmos as nossas verdadeiras identidades pessoais.

Ledo engano.

Quando paramos para pensar sobre as origens do “homem-massa” a partir da reflexão de Kierkegaard sobre o problema da autoalienação, a perspectiva muda, e notamos que a questão não é tão simples assim.

De acordo com Kierkegaard, a tendência à autoalienação, ou seja, o desejo de não ser si mesmo — que atualmente se manifesta como o desejo de ser “como os outros” — está enraizado na condição humana. E isso porque, por natureza, a tarefa de ser si mesmo, ou seja, o processo de individuação, o desenvolvimento da personalidade humana exige do homem a lida com a angústia a o desespero, o que, naturalmente, a maioria prefere evitar.

Sendo assim, de uma perspectiva kierkegaardiana, pode-se dizer que o problema da autoalienação — que deu origem ao fenômeno contemporâneo do “homem-massa” — não é uma mazela típica da modernidade tardia. Muito pelo contrário. Acompanha o homem desde a idade da pedra, com a diferença de que, em nossas sociedades hiperconectadas e superpovoadas, quando os indivíduos parecem ter sido reduzidos a uma mera engrenagem no complexo mecanismo do capitalismo global, onde já não nos resta mais tempo ou espaço para o exercício da solitude e o cultivo da subjetividade, a alienação agora é em massa, e o desejo de não ser si mesmo encontra ampla satisfação em uma indústria altamente lucrativa responsável por comercializar padrões de pensamento e comportamento, bem como identidades tribais.

Daí que, se para para nos tornarmos “modernos” e chegarmos a esse ponto a história nos mostra que, antes, tivemos que secularizar a vida em sociedade, removendo Deus do centro de nossas cosmovisões, Kierkegaard pôde concluir que o fenômeno da “a-espiritualidade”, sobre o qual nos alerta com a sua obra, não tem a ver somente com a perda de relevância da religião na vida contemporânea, mas sobretudo com os obstáculos que esse estilo de vida burguês e comezinho impõe ao desenvolvimento de uma verdadeira consciência espiritual no sujeito contemporâneo.

O que está intimamente relacionado ao nosso terceiro e último ponto.

Para Kierkegaard, pelo menos desde o oitocentos, podemos afirmar que vivemos em uma sociedade “a-espiritual” não tanto porque a ideia de Deus deixou de ser, no Ocidente, o sustentáculo metafísico do edifício do conhecimento — o que acabou minando a influência das tradições de fé na vida em sociedade — , mas sim porque, após a Revolução Industrial, com a emergência das multidões e a transformação das relações sociais, aos poucos fomos construindo uma cultura que, ao exigir de nós extremo foco no âmbito da imediatidade, da exterioridade e das coisas concretas, acaba nos impelindo constantemente para “fora de nós mesmos”, impondo diversos obstáculos à experiência do regresso a si.

O que, em vista disso, também obstaculiza a experiência mesma do salto de fé, que Kierkegaard identifica como sendo a única saída para a plena autorrealização da humanidade.

Dito de outra forma, fruto de uma laicidade que nos sobrecarrega de ocupações e preocupações mundanas até o ponto de já não nos ocuparmos de nós mesmos e esquecermos a “preocupação última” de que nos falava Paul Tillich, a “a-espiritualidade” não é apenas um conceito que nos permite explicar a progressiva perda de relevância da religiosidade no mundo contemporâneo. De fato, podemos falar com propriedade de “a-espiritualidade” também no contexto da atual sociedade de massas, onde o asfixiamento da subjetividade nos permite explicar o fenômeno do “homem-massa” em conexão direta com a reflexão de Kierkegaard a respeito do problema da autoalienação.

Em síntese, ao subtrairmos a ideia de Deus daquela base conceitual comum a partir da qual pensávamos o mundo e organizávamos a vida em sociedade, passamos a encarar a existência como uma realidade fundamentalmente temporal, desprovida de uma dimensão transcendente. Foi assim que, por termos redefinido a ordem das nossas prioridades existenciais, relegamos a fé a uma questão de foro íntimo, subjetiva, de tal modo que, se em função do nosso estilo de vida atarefado do século XXI, já não dispomos mais de tempo para a prática da espiritualidade, isto significa que tampouco dispomos de tempo para a contemplação da interioridade, isto é, para a vida do espírito, para o desabrochar de uma consciência espiritual genuína e profundamente enraizada na consciência de si, na busca do “si-mesmo” e no exercício do autoconhecimento.

E disso se segue que, se para Kierkegaard, desalienar-se é espiritualizar-se, ou melhor, desenvolver consciência espiritual — o que, em última análise, implica fazer a experiência do salto — , então, podemos concluir que, para ele, o oposto do “homem-massa” é o “cavaleiro da fé”, o sujeito religioso, aquele que, em sua busca por si mesmo, não para nos estádios ético e estético da existência, mas segue adiante, projetando-se nessa busca para além dos limites da sensibilidade e dos papéis que nos são atribuídos pela sociedade, onde a subjetividade transparece a si mesma e aponta para o horizonte da transcendência.

Enquanto o preceito délfico “estava escrito às portas do mundo antigo”, nos lembra Oscar Wilde, “‘sê tu mesmo’, deverá estar escrito às portas do mundo novo”, o que chama a nossa atenção para a importância igualmente oracular de que a tarefa de ser si mesmo está revestida no tempo presente.

Isto posto, a pergunta que Kierkegaard nos faria é a seguinte: como podemos lidar com o desespero de não querer ser si-mesmo em um “admirável mundo novo” no qual já não há mais lugar para Deus?

REFERÊNCIAS

KIERKEGAARD, S. A doença para a morte. Tradução de Jonas Roos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2022.

ORTEGA Y GASSET, J. A rebelião das massas. Tradução de Herra Filho. Edição Eletrônica, Sem ano. Domínio Público.

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