O cristianismo não existe

Lucas de Siqueira
8 min readMar 3, 2024

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Crucifixo em meio às sombras. Imagem: Pixabay.

O que você diria para alguém que, em um mundo repleto de igrejas e de símbolos cristãos, no qual a maioria da população se diz cristã, celebra a Páscoa, o Natal, e fala numa linguagem que remete a ideias e a crenças oriundas do Novo Testamento, te dissesse que o cristianismo não existe?

Ou melhor, e se em um país como o Brasil, por exemplo, no qual eventos religiosos como o Círio de Nazaré e a Marcha para Jesus atraem milhões de pessoas, te dissesse que tudo isso, embora possa ser fruto de uma religiosidade sincera, na verdade não tem nada a ver com o cristianismo, mas com alguma outra coisa?

Em um primeiro momento, é provável que você ficasse perplexo com o que acabou de ouvir. Afinal, se o cristianismo não existe, então o que é que leva tantas pessoas ao redor do planeta a rezar terços, participar de procissões, pagar promessas, frequentar a escola dominical e pagar o dízimo, dentre outras coisas?

E o que significa tudo isso, senão pertencer a uma das três grandes religiões abraâmicas a que se convencionou dar o nome de cristianismo?

Mas que grande bobagem”, talvez você dissesse, “é claro que o cristianismo existe!

Receio que, assim como muitas outras pessoas, talvez você acabasse reagindo dessa forma, e isso sobretudo se você se identifica como um adepto dessa religião. Aliás, é provável que, se for esse o caso, ao ser confrontado por alguém que te dissesse algo parecido, você não apenas interpretaria isso como uma ofensa, mas também chegaria à conclusão de que esse alguém só pode ser um ateu, um lunático ou um indivíduo irreligioso que, definitivamente, não entende nada de religião.

E muito menos de cristianismo.

Quer dizer, sabendo das suas convicções religiosas, quem poderia te dizer uma coisa dessas, a não ser alguém que estivesse deliberadamente tentando te provocar?

Digo, se o cristianismo não existe, então, no fundo, talvez também não existam verdadeiros cristãos. Talvez toda essa história de seguir Jesus, de ser batizado e viver de acordo com os seus ensinamentos, seguindo à risca os mandamentos da Igreja, não passe de uma grande ilusão.

Talvez Nietzsche estivesse certo e, no fundo, só tenha existido um único cristão. O nazareno, que morreu na cruz, há cerca de dois mil anos atrás.

Mas, e se eu te dissesse que o pensador dinamarquês Søren Kierkegaard, que foi quem afirmou que o cristianismo não existe, ou melhor, que o autêntico cristianismo já foi abolido há muito tempo, não apenas não quis ofender ninguém com isso, mas era ele mesmo um sujeito apaixonado pelo Evangelho, alguém que, quando fez essa constatação, pensou que estava, na verdade, prestando um valioso serviço a Cristo, ao seu Reino e à Igreja?

Você acha isso desconcertante?

Pois é, e não é para menos.

Grande parte da sociedade dinamarquesa da época — uma sociedade profundamente marcada pela influência da Igreja Luterana — também achou. Na verdade, tanto foi assim que a própria Igreja da Dinamarca — uma igreja estatal de tradição reformada — achou por bem manter-se afastada do autor dessa ideia, evitando a todo custo ser associada a sua figura. Contudo, quando disse que o cristianismo não existe, Kierkegaard não quis, com isso, negar que ainda hoje existem entre nós verdadeiros discípulos de Jesus e muito menos ofender a sensibilidade religiosa de ninguém.

Pelo contrário.

Na verdade, era Kierkegaard quem alegava estar ofendido com o estilo de vida daqueles que, ao seu redor, se diziam cristãos.

E, se você acha difícil compreender essa sua forma inusitada de protestar contra o establishment do “ocidente cristão”, basta lembrar que, em meados do oitocentos, o mundo inteiro já havia assistido a horrores demais em nome da “religião cristã” para entender porque, a seu ver, para além do ideário, do vocabulário e da simbologia, a fé que a maioria das pessoas alegava professar em sua época tinha pouca ou quase nenhuma conexão com o Cristo e com o seu Evangelho.

Pense, por exemplo, no contraste entre os princípios e os valores expressos por Jesus no Sermão da Montanha e acontecimentos históricos terríveis como as cruzadas, a caça às bruxas, o massacre da noite de São Bartolomeu e a guerra dos trinta anos.

Pense no antissemitismo crônico da “cristandade” e na “cristianização” forçada dos povos nativos da América.

E o que dizer da opulência, da hipocrisia e dos escândalos de corrupção de tantos membros do clero frente à frugalidade e o caráter moral radicalmente honesto do Pobre de Nazaré?

E quanto à fome, à injustiça, à intolerância e à desigualdade social tão presentes nas assim chamadas “nações cristãs”?

Para Kierkegaard, tudo isso era inaceitável. Ser cristão, para ele, não poderia se resumir a cumprir o preceito dominical, orar entre quatro paredes e dar esmolas de vez em quando, como se isso bastasse.

Era preciso que alguém fizesse alguma coisa.

Era preciso que alguém chamasse a atenção das pessoas para o que realmente importa na mensagem de Jesus.

E ele tentou fazer isso: em 1850, publicou “Práticas do Cristianismo”, obra na qual não apenas nos legou um verdadeiro diagnóstico daquilo que, a seu ver, havia de errado com o estilo de vida daqueles que se consideravam “cristãos” em sua época, mas também nos explicou o motivo pelo qual, nos tempos que correm, mais do que nunca, se faz necessário “reintroduzir o cristianismo na cristandade”, desempenhando entre os povos pretensamente “cristãos” da era moderna o mesmo papel que, outrora, talvez um missionário corajoso tenha tido a intenção de desempenhar entre os povos pagãos da antiguidade.

Em “Práticas do Cristianismo”, o argumento principal de Kierkegaard é muito simples: o verdadeiro cristianismo consiste na imitação de Cristo.

Qualquer outra concepção de cristianismo que não nos leve a adotar um estilo de vida análogo ao de Jesus está errada.

Por conseguinte, basta olhar ao seu redor para constatar que o cristianismo, entendido enquanto religião organizada, movimento coletivo dos seguidores de Jesus ou instituição que preserva os seus ensinamentos, pura e simplesmente não existe.

Ou melhor, já existiu. Mas não existe mais. Desapareceu.

O verdadeiro cristianismo já foi abolido há muito tempo, quando, para a maioria dos “cristãos”, a pessoa do Nazareno, com todo o seu despojamento e austeridade, se tornou uma figura do passado, sendo suplantada pela ideia de uma Igreja poderosa e influente como a verdadeira porta-voz de Deus entre os homens, apesar da enorme discrepância entre o estilo de vida do Cristo e o de seus supostos representantes.

No entanto, aqui é preciso ter algum cuidado para que se possa entender exatamente o que Kierkegaard quer dizer quando se refere ao fenômeno da “abolição do cristianismo”.

Para Kierkegaard, quando se fala em “abolição do cristianismo”, com isso não se quer dizer que uma autoridade anticristã tenha, de súbito, decretado o fim da religião cristã há séculos atrás, num gesto de perseguição religiosa, ou então que o cristianismo tenha deixado de existir a partir do momento em que os papéis da Igreja e do Estado se confundiram na Idade Média, com o estreitamento da relação entre os papas e os imperadores, como uma leitura demasiado apressada dessa história talvez deixe entrever.

Não.

Para Kierkegaard, a abolição do cristianismo na cristandade não foi um fenômeno que ocorreu de cima para baixo, como se o clero por si só pudesse ser ser responsabilizado como o grande vilão da história, e tampouco em função de supostas pressões externas, como se a lenta e progressiva introdução de elementos alheios ao Novo Testamento ao corpo do pensamento cristão o tivesse, por fim, paganizado de vez.

A abolição do cristianismo na cristandade, de acordo com Kierkegaard, foi um fenômeno que ocorreu de dentro para fora, e num sentido transversal, seja porque a ênfase que a Igreja deu a si mesma, ao seu poder e às suas leis ao longo do tempo acabou por minar a autoridade do próprio Cristo, cuja pregação não raro constitui um contraponto ao status quo, seja porque, em meio às grandes massas cristianizadas, a referência, na maioria das vezes, deixou de ser o próprio Cristo, tal como Ele se apresenta nos Evangelhos, para se tornar o Cristo domesticado pelos teólogos e exegetas, um Cristo que se admira, mas que não se imita; um Cristo que reflete mais as ânsias e os preconceitos de cada época do que o caráter, a moral e as exigências de um ideal eterno.

Para Kierkegaard, portanto, é nesse sentido que se pode dizer que o cristianismo não existe, muito embora ele já tenha existido.

O seu referencial é o cristianismo primitivo, a Igreja Primordial, aquela que se constituiu nos primeiros três séculos da história eclesiástica, um período em que, para os discípulos, existir era sinônimo de resistir.

Existir era sinônimo de resistir ao mundo, às suas influências e à tentação de reduzir o cristianismo a uma doutrina; algo em que se crê, mas que não nos cala fundo na alma; algo que se admira, mas que não nos leva à μετάνοια (metanóia), à adoção de um compromisso existencial que implica o envolvimento de todas as dimensões da pessoa humana na edificação do βασιλεία τοῦ θεοῦ, o Reino de Deus, o Evangelho colocado em prática.

Em síntese, pode-se dizer que o argumento discutido por Kierkegaard em seu “Práticas do Cristianismo” constitui, sim, uma afronta ao paradigma religioso vigente. Ao destacar a necessidade de que o Cristo, tal como ele se afigura no Novo Testamento, não seja encarado como uma figura histórica que remonta ao passado, mas como Deus Vivo cujas palavras e ações são sempre contemporâneas, deseja contrapor a prática do discipulado às práticas do cristianismo, que historicamente o deixou em segundo plano para colocar em evidência a efígie de um Cristo triunfante, cuja Igreja já não reflete mais o exemplo do Jesus que vemos nos Evangelhos, mas outra coisa. Não obstante, “Práticas do Cristianismo” não deve ser lido como um panfleto anticristão, posto que também constitui um apelo para que se julgue a mensagem do Cristo pelo que ela é originalmente, e não tanto pelo que as gerações de “cristãos” cujas consciências foram formadas pelo ethos da “cristandade” pretendem que ela seja.

E, se hoje em dia, quase duzentos anos após Kierkegaard nos ter convidado a “reintroduzir o cristianismo na cristandade” ainda nos vemos às voltas, no “ocidente cristão”, com os mesmos problemas que o levaram a chegar a esta conclusão em meados do século XIX, talvez já tenhamos passado da hora de dar inicio a esta empreitada.

Concluo esta reflexão com uma citação extraída da obra “Discipulado”, do mártir luterano Dietrich Bonhoeffer, que as fontes dizem ter se inspirado em Kierkegaard para fundar a sua “Igreja Confessante”, em oposição ao regime nazista:

“Uma ideia de Cristo, um sistema doutrinário, um conhecimento religioso geral da graça ou do perdão dos pecados não implicam, necessariamente, o discipulado; na verdade, isso tudo pode até excluí-lo e, aliás, tornar-se seu inimigo. A relação que se pode ter com essa ideia é de conhecimento, de entusiasmo, talvez até mesmo de realização, porém nunca a relação de discipulado pessoal e obediente. Cristianismo sem Jesus Cristo vivo permanece um cristianismo sem discipulado, e cristianismo sem discipulado é sempre um cristianismo sem Jesus Cristo; é apenas uma ideia, um mito. Um cristianismo em que exista apenas Deus pai [como ideia], mas não Cristo como seu filho vivo, anula por completo o discipulado; nele existe a fé em Deus, mas não o discipulado” (Bonhoeffer, 2016, p.34).

REFERÊNCIAS:

Bonhoeffer, D. Discipulado. Tradução de Murilo Jardelino e Clélia Barqueta. São Paulo: Mundo Cristão, 2016.

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