O desespero da autoconsciência

Lucas de Siqueira
4 min readMay 1, 2024

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Hominídeo antigo pensativo. Imagem criada por IA.

O que nos distingue dos animais?

Para Kierkegaard, muito mais do que o andar ereto ou o aparato cognitivo, o que nos diferencia de todas as outras formas de vida da Terra é precisamente a capacidade de desesperar, isto é, o fato de que, enquanto seres humanos, somos não apenas seres sencientes, dotados da faculdade da apercepção, mas também seres conscientes de que somos sencientes; criaturas capazes de contemplar a própria subjetividade e de, consequentemente, se inquietar com a sua condição existencial.

O que levanta uma série de questões.

Pense, por exemplo, no primeiro indivíduo de nossa espécie a se tornar autoconsciente. Será que houve um? Ou será que esse foi um fenômeno coletivo? Será que o tornar-se consciente foi um processo gradual, uma lenta progressão de um estado inconsciente para outro, semiconsciente, até que finalmente pudéssemos nos tornar conscientes de que existimos? Ou será que esta foi uma transição abrupta, algo como um salto quântico, que envolve quebra de continuidade e que se dá do nada, sem sobreaviso?

De uma maneira ou de outra, deve ter sido desesperador.

E eu digo isso não apenas no sentido kierkegaardiano do termo.

Imagine como deve ter sido perceber, num sobressalto, que se é alguém. Que se tem anseios e aversões, afetos e receios. Que se é livre para fazer escolhas e que se pode resistir aos próprios impulsos. Que temos um corpo e que existem coisas ao nosso redor que causam dor e prazer. Que se deve administrar tudo isso e, ao mesmo tempo, lutar pela própria sobrevivência.

Como foi isso?

Como foi que lidaram com o psiquismo os primeiros de nossa espécie a despertar para os desafios da vida subjetiva?

Certamente, essa não deve ter sido uma experiência muito satisfatória.

Tornar-se subitamente consciente de que se existe e de que se é mortal, e isso em meio a um mundo desconhecido e ameaçador, repleto de feras famintas e com recursos escassos, sem qualquer referencial a partir do qual organizar as ideias, deve ter sido uma espécie de trauma primordial que causou profunda impressão nos nossos ancestrais.

Ao contrário do que nos diz a narrativa tradicional sobre as origens da espécie humana, talvez o homem moderno não tenha surgido ao se tornar “sapiens”, isto é, inteligente, e , portanto, capaz de utilizar ferramentas e de manipular o fogo, mas sim “desperatus”, ou seja, autoconsciente, e, portanto, consciente de que é alguém, de que existem “outros” e de que estamos todos constrangidos pelos limites inerentes à natureza humana.

Com efeito, pode-se especular que foi precisamente do choque proporcionado pelo despertar para a “vida do espírito” que surgiu um primeiro esboço de civilização.

Ao se dar conta de sua própria condição existencial, o animal humano, desamparado, deve ter buscado desesperadamente a companhia de seus semelhantes para se reconfortar, e talvez assim tenham nascido as nossas primeiras comunidades tribais. Inquieto, e sem saber exatamente como lidar com as sensações de medo, angústia e ansiedade que de repente lhe assaltaram, o bicho-homem deve ter tentado desesperadamente se comunicar, e talvez assim tenham nascido as nossas primeiras formas de linguagem. Assustado com a perspectiva do fim, o homo desperatus deve ter criado as suas primeiras cosmogonias, as suas primeiras mitologias e as suas primeiras religiões, e talvez assim tenham nascido a filosofia, o pensamento abstrato e a crença na existência da alma.

Seja como for, o fato é que, por trás daquilo que Harari já chamou de “revolução cognitiva” — o momento histórico em que a espécie humana dá o seu maior salto evolutivo na direção do que é hoje — , há todo um drama que se desenrola para além do âmbito da mera biologia, e, se Kierkegaard estava certo ao afirmar que a possibilidade do desespero deve ser entendida, entre nós, precisamente como aquilo que nos distingue dos outros animais, talvez ele também estivesse certo ao chamar a nossa atenção para o fato de que “o grau de consciência comporta em seu crescimento, ou seja, em proporção ao seu crescimento, a potenciação sempre crescente do desespero; quanto mais consciência tanto mais intenso é o desespero” (KIERKEGAARD, p.76).

O que, por si só, levanta uma série de outras questões.

Levando em conta, por exemplo, toda a discussão que vem sendo travada sobre o desenvolvimento da robótica e sobre a possibilidade de que, muito em breve, tenhamos que conviver com as assim chamadas AGI — Artificial General Intelligences, ou “Inteligências Artificiais Gerais” — , máquinas capazes de replicar ou emular perfeitamente o comportamento e as habilidades cognitivas de um ser humano qualquer, ou até mesmo de as ultrapassar, podemos nos perguntar: seriam estas máquinas sencientes? Ou melhor, autoconscientes?

Ou, ao lidar com um robô desse tipo, estaríamos lidando com algo como o “zumbi filosófico” do qual falavam um Robert Kirk e um David Chalmers?

E, para o caso de máquinas autoconscientes, o que isso implicaria, de um ponto de vista kierkegaardiano?

Poderão as máquinas se desesperar?

Como elas lidariam com isso?

E quanto a uma superinteligência, com uma consciência trilhões de vezes mais potente que a proporcionada pelo cérebro humano, a que níveis de desespero uma tal máquina autoconsciente poderia chegar?

Sabendo de todas essas possibilidades, e conscientes de que, muito provavelmente, careceremos de respostas claras e objetivas para estas e outras questões por um bom tempo, estudar Kierkegaard, conhecer sua obra e dar ouvidos ao que ele tem a nos dizer sobre o problema filosófico da existência humana pode ser uma boa pedida em se tratando de refletir sobre as nossas responsabilidades éticas e morais diante da criação de máquinas capazes de, a um só tempo, nos superar em testes de inteligência e experimentar o desespero da autoconsciência em uma dimensão jamais imaginada por qualquer um de nós.

O que o futuro das IAs nos reserva?

Não sei.

Mas espero que os responsáveis pela criação de máquinas autoconscientes tenham um mínimo de consciência do que estão fazendo.

REFERÊNCIAS:

KIERKEGAARD, S. A doença para a morte. Tradução de Jonas Roos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2022.

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