Salto e Sobressalto

Lucas de Siqueira
4 min readMay 11, 2024

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O tema do salto, e, mais especificamente, o tema do “salto de fé” já foi amplamente discutido na literatura existencialista desde que ele apareceu pela primeira vez na obra de Kierkegaard, em meados do século XIX, muito embora ele mesmo jamais tenha se servido dessa expressão e o problema filosófico ao qual ele faz referência, em si mesmo, tenha sido proposto originalmente por Lessing em seu ensaio “Sobre a demonstração em espírito e força”, de 1777, e não por Kierkegaard, como se costuma pensar.

Resumidamente, ele pode ser descrito da seguinte maneira: as verdades da religião se pretendem universais e necessárias, assim como as da matemática. No entanto, sabendo-se que não podemos contar com o auxílio da razão pura para demonstrá-las e que, não raro, se argumenta que a ocorrência de milagres serve para comprovar a sua validade, quando paramos para pensar naquilo que nos leva a fazer a experiência de fé, parece que estamos diante de um impasse.

Verdades históricas, como um milagre, são contingentes, e, portanto, enquanto tais, jamais podem servir como prova para verdades da razão.

Há como que um abismo intransponível — uma “vala horrível”, no dizer de Lessing — que separa a dimensão das verdades da religião da dimensão das verdades contingentes, e, portanto, do ponto de vista da razão, não há nada que justifique a decisão do sujeito pensante de passar a crer em uma “verdade religiosa” a partir de uma “verdade contingente”, por mais convincente que ela possa nos parecer.

Daí a necessidade do “salto”.

De acordo com Lessing, só é possível atravessar esse abismo epistemológico por meio de um ato subjetivo, um “impulso existencial” — diria um kierkegaardiano — que nos permite galgar a vala horrível deixada pelo esboroamento da tradição metafísica ocidental e, enfim, abraçar a experiência religiosa. Ou seja, por trás de toda confissão de fé há, fundamentalmente, uma motivação subjetiva. Seria inútil tentar induzir alguém a crer na existência de Deus, na imortalidade da alma ou no dogma da transubstanciação, por exemplo, por meio de algo como uma prova da ressurreição de Cristo ou de qualquer outro milagre associado a sua figura.

Afinal, por mais que tivéssemos evidências empíricas disso tudo, que conexão lógica existe entre eles e as verdades religiosas que se intenciona vincular a estes acontecimentos?

Nenhuma.

Na falta de uma certeza apodítica, um cético pode sempre buscar explicações alternativas para esses fenômenos, e, portanto, gosto de pensar que, antes do salto, isto é, antes de que as verdades religiosas possam se tornar uma “hipótese viva” para o sujeito pensante — para tomar aqui emprestado um conceito desenvolvido por William James em seu opúsculo “A vontade de crer” — , é necessário fazer, em algum momento, a experiência do sobressalto, ou melhor, a experiência do “espanto”, do “assombro” perante o grande mistério que envolve a natureza da realidade em sua totalidade, e que nenhuma teoria científica, nenhum sistema filosófico, nenhuma doutrina humana jamais será capaz de explicar.

Isto é, se é preciso que alguém já tenha se permitido ser incomodado com a absurdidade da existência para se por a buscar, para ela, um sentido, é preciso também já ter se permitido ser atravessado pela consciência dos limites inerentes à condição humana perante essa busca para se colocar diante da vala horrível de Lessing e, enfim, encarar o “salto de fé” como uma escolha legítima.

Sem se dar conta de que a existência de todas as coisas, de modo geral, já constitui, por si só, uma espécie de milagre, bem como de que, por esse simples motivo, tudo o que existe já está revestido, por natureza, de um caráter numinoso, uma pessoa jamais estará em condições de se abrir à possibilidade do salto quando confrontada por algo que, em virtude do seu aspecto “miraculoso”, evoca a ideia da transcendência e impinge em nós um profundo sentimento de reverência.

Numa palavra, quem não é capaz de se sobressaltar perante o milagre quotidiano das coisas ordinárias jamais será capaz de fazer a experiência do salto quando confrontado pelo “extraordinário”.

É como famosamente disse, certa vez, o físico Albert Einstein:

“Só há duas maneiras de viver a vida: a primeira é vivê-la como se os milagres não existissem. A segunda é vivê-la como se tudo fosse milagre”.

E se tudo for um milagre?

No fim das contas, talvez o problema da vala horrível de Lessing não diga respeito apenas àqueles que foram testemunhas de algum evento insólito ou improvável, como a cura de um paralítico ou a travessia do Mar Vermelho, mas a todos aqueles que já contemplaram o céu noturno, estrelado, e, com o coração inquieto, já se perguntaram: “por que existe algo, em vez de nada?”

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